quarta-feira, 27 de maio de 2009

No Cenário Habitual


Era impossível não a notar entre todas aquelas pessoas incógnitas à espera do tradicional cafezinho da tarde. Sempre leal ao mesmo estabelecimento, situado no Campo 24 de Agosto, a visão daquela rapariga muito bonita, mas aparentemente solitária, era um quadro sempre presente a todos os que ali circulavam no fim dos dias frios de Inverno ou dos ardentes dias de Verão.
Não sei o que me aproximava dela, mas, como se tratava do meu trajecto habitual, por vários meses, todos os dias, excepto aos fins de semana, percebi-a ali, através das janelas de vidro, acompanhada do seu café e copo de água, a ler o jornal do dia. Apesar do seu olhar enigmático e a tristeza que a parecia dominar por completo, não ousava sequer dirigir-lhe a palavra, embora já soubesse ser brasileira e residente num prédio do outro lado da rua. Tinha obtido esta informações de modo discreto, através de um dos empregados.
Ainda assim, sem saber exactamente porquê, sentia que falar com ela era imprescindível e, se bem que incomunicáveis, tinha a certeza nítida de que o silêncio daqueles olhos cor de mel gritava por um pedido de auxílio, talvez ignorado pela maioria das pessoas que não conseguiam observar mais do que a inquestionável beleza daquela triste mulher. Ou talvez fosse eu que estivesse a alimentar uma paixão platónica. No entanto, sempre resguardada no seu mundo, não conseguia vislumbrar qualquer oportunidade clara para me aproximar dela.

Certo dia, com o sol ainda a brilhar num típico dia de Primavera, observei-a com o olhar distante, inerte, a contemplar um envelope, enquanto o seu café continuava intacto. Não fui capaz de continuar a resistir. Sem hesitar, entrei no estabelecimento. Perguntei se a poderia ajudar, sem ter a noção exacta do que aquela interpretação pudesse significar para ela.
- Obrigada. Eu estou bem - respondeu, sem me olhar nos olhos. Quando os meus passos davam conta da minha partida, emendou surpreendentemente:
- Eu estou com muito medo do que me espera no Brasil a partir de amanhã.
Naquele momento percebi que ela precisava de dizer alguma coisa. As suas palavras, no entanto, foram sufocadas pela lágrima que deslizou pelo seu rosto. Sentei-me à sua frente, afrouxei o nó da gravata e percebi que o envelope sobre a mesa continha uma passagem aérea. À sua esquerda encontrava-se uma espécie de diário, escrito à mão e composto de várias páginas.
Sem dizer qualquer outra palavra, arrastou lentamente o diário sobre a mesa até deixá-lo ao alcance das minhas mãos. No momento em que o segurei, ela levantou-se e só me restou tempo para lhe perguntar o horário da sua partida para o Brasil no dia seguinte.

O caminho de regresso a minha casa nunca me parecera tão extenso. Queria saber o que estava escrito naquele diário de capa bege. Não sei se teria agido da mesma maneira se no meu lugar estivesse outra pessoa qualquer. Porém, isso agora não era importante. O facto era que o destino colocara nas minhas mãos parte da vida daquela bela mulher que já há muito tempo tinha despertado a minha atenção.
Logo nas primeira páginas percebi que se tratava de uma história no mínimo intrigante e inesperada. Abordava um tema constante desde os primórdios da humanidade, mas sempre alvo de tanta hipocrisia e preconceitos.
O sol já não brilhava e não me apercebi do passar das horas à medida que mergulhava na leitura de cada parte daquele diário. Foi assim que entrei pela madrugada, a partilhar as sensações paradoxais vividas por aquela rapariga aparentemente frágil, mas que de certa forma se mostrara uma rocha diante das adversidades imensas que a vida lhe propusera. Era tarde e eu precisava de dormir. No dia seguinte, pelo meio-dia estaria à sua espera no aeroporto Sá Carneiro. Queria ver aqueles olhos nem que fosse por uma última vez e quem sabe sentir o gosto da sua boca num beijo terno e repleto de cumplicidade....

4 comentários:

LadyM disse...

Que linda e terna narrativa. Não esperava menos de vc quando te conheci. Beijos querido Be.

T disse...

Opa..e agora tb me fazes destas coisas? Metes-me curiosa, ansiosa..e pior, lamechas...estou aqui toda lamechas a ler-te!

Encantador...
Despediste-te dela?
(tens que escrever um livro...vá, que compro-to)

beijos ;)

Bernardo Lupi disse...

Amiga T:

Tudo o que escrevo com a etiqueta de contos, são produtos da minha imaginação.

Luna disse...

Excelente relato. Terno e realista. Difícil não ter acontecido...